A Caminho do Céu é uma série coreana curta original do Netflix, com dublagem em português, de apenas 10 episódios. A história gira em torno de uma peculiar equipe de “auxiliares de limpeza de trauma”, que ajuda a recolher e limpar os pertences do falecido, entregá-los para quem fica e, enfim, ajudar ambos em sua última mudança a “caminho do céu” enquanto trabalham o próprio luto e o conflito da chegada de um homem que não tem nenhum respeito pela vida.
Esta série é tão bonita que fico com receio de não fazer jus a todas as emoções que ela me causou, porém, vamos tentar. Inspirado na obra não-ficção “Ddeonan Hooe Namgyeojin Geotdeul”, publicada em 2015, sobre o primeiro homem sul coreano a fazer o trabalho de organizar os pertences de uma pessoa morta, o roteiro é da Yoon Ji Ryun, que adaptou o famoso mangá Boys Over Flowers (Garotos Antes de Flores) para as telas coreanas e Angel Eyes.
Inicialmente episódico, com o “caso da vez”, a história vai tomando forma e nos preparando, aos poucos, para o objetivo da série: ajudarmos a enterrar o personagem morto no primeiro episódio. O trabalho de direção de Kim Sung Ho conta a história por belíssimos jogos de luz e cores, que mudam representando a passagem para o céu, a reminiscência e as memórias, quando sombrias ou de esperança. Os planos revelam as ausências e cada cena tem um significado. Todo objeto em cena relata a história de quem se foi, simbolizando as presenças mesmo na ausência e também dando uma informação crucial sobre ela, sem precisar dizer nenhuma palavra a respeito. A música é toda composta por clássicos no piano, que trazem um conforto para a alma.
A série está recheada de simbologia, com extrema delicadeza, mesmo tratando-se de uma crítica social ferrenha a várias mazelas que vivemos na sociedade (feminicídio, homofobia, abandono), que são resultado da “coisificação” do ser humano, que é descartado perante a glorificação do plano material – o importante é ter, não ser. Os auxiliares de traumas agem com humanidade, na contramão da morte tratada como um descarte de corpos, literalmente o lixo que precisa ser limpo. Abaixo, falaremos mais a respeito.
Elenco
Tang Joon Sang (que fez participação em Pousando no Amor) vive Han Geuru, um rapaz com Síndrome de Asperger, que tem dificuldade de sentir o que as pessoas sentem e de se relacionar com elas, mas possui uma grande inteligência e memória fotográfica. Uma curiosidade muito interessante sobre a dublagem é que colocaram nele a voz do Doutor Shawn, de Good Doctor, e fãs da série americana (que por sua vez se inspirou em uma série coreana) com certeza vão gostar deste k-drama. Os fãs de Tudo Bem Não ser Normal também vão sentir um quentinho no coração pois assim como Sang Tae, que era apaixonado por dinossauros, Geuru tem ligação com os peixes. O personagem é mesmo a peça central da série. É ingênuo e, a seu modo, muito sensível. Suas perguntas e conclusões sobre a vida fazem pensar.
Hong Seung Hee (A neta em Navillera) é Yoon Namu, a vizinha carinhosa e otimista que é a melhor amiga de Geuru e funciona como um anjo da guarda dele. A atriz dá um toque de doçura, humor e ajuda a equilibrar a revolta e o impacto do mundo insensível que os cerca.
Lee Je Hoon (Arquitetura 101) faz uma envolvente atuação como Cho Sang Gu, o tio de Geuru. Ele é um ex-presidiário que vive de vícios e flerta constantemente com a morte. Vê na oportunidade de ser tutor do sobrinho uma maneira de ficar rico e, apesar de ser um homem fisicamente forte que age como se não tivesse mais nada a perder, é incapaz de lidar com a morte de perto.
Ji Jin Hee (Misty, Joia no Palácio) interpreta Jeon Gu, o pai de Geuru. Sua presença é marcante e acalentadora de um verdadeiro anjo da guarda, deixando clara sua influência nos pensamentos do filho.
Nota para participações especiais como o Lee Jae Wook (de Extraordinary You e Do Do Sol Sol La La Sol) e Choi Sooyoung (do SNSD, Girls Generation, que atuou em Na Direção do Amor)
Interpretação dos simbolos presentes na série
Os nomes “Geuru” e “Namu” significam árvore. Em idiomas do leste asiático é comum que existam palavras específicas para contar certos tipos de objetos ou seres vivos. No caso, “Geuru” é o “contador de árvore”. “Namu han geuru” é uma frase que significa “Uma árvore”. Na história, os dois personagens são complementares e simbolizam o mesmo. Geuru é gentil e inocente, com uma mente brilhante, mas dificuldade de sentir emoções. Já Namu é espontânea e emotiva, com um coração doce. Poderiam representar a dualidade do ser humano, o yin yang, animus e anima não apenas diante do luto, mas representam a ambivalência da própria vida, representada pelo significado da árvore.
A relação da árvore no campo simbólicoé de ligação entre o céu e a terra. Segundo o psicólogo Carl Gustav Jung: “qualquer árvore que queira tocar os céus precisa ter raízes tão profundas a ponto de tocar os infernos”. Ou seja, para podermos viver a plenitude, primeiro precisamos experimentar as profundezas do inferno de nossas sombras. Essa passagem é a chave de toda a trama.
O título do k-drama em coreano (“Move To Heaven”) significa, em tradução livre, “Mudança para o Céu”, dando uma impressão de continuidade da vida em outro ambiente. Na religião, este lugar seria o Paraíso, o Céu. Porém, há também um significado psicológico por trás disso. Quando alguém morre, a energia gasta no amor daquela pessoa é deslocada, podendo tornar-se patológica ou transformada em outra motivação de vida. Em todo caso, a pessoa parte, mas não deixa de existir, se ela for lembrada, ou seja, se ela passar a morar na mente e no coração de quem fica.
Essa mudança para o céu do falecido não se dá sozinha. Faz parte dela também o processo de aceitação dos sobreviventes, que precisam ajudar a mudança da pessoa física para estado de lembrança. Essa transição não é nada fácil e, por esse motivo, a jornada “a caminho do Céu” também é a direção que parentes e amigos de quem morre deve seguir, para que libertem o falecido e alcancem sua paz, seu próprio céu.
Através do tio de Geuru podemos ver o simbolismo do próprio inferno. O tio é solto da prisão (do inferno, ou dos confins da mente) para atormentar o sobrinho e sua vizinha (simbolizando a pessoa que vive o processo de luto), com o objetivo de buscar o que ele considera o céu (pensando em dinheiro), mas é através desse processo em lidar com a morte que ele começa a valorizar a vida. Ele é o símbolo de todos os vícios e maus costumes que podemos adotar quando não aceitamos a morte e nos tornamos destrutivos, com a energia perturbada e transformada no segundo estágio do luto: a raiva. Apesar de ser fisicamente forte, ele na realidade está em estado de fuga e não consegue lidar com a dor de frente. Pessimista, vê a vida e os outros com ódio, porque é isso que lhe foi ensinado.
“Você só vê as coisas como você é”
Já Geuru representa o primeiro estágio: a negação e o isolamento. Através do simbolismo da Síndrome de Asperger, na qual há dificuldade de aceitar mudanças abruptas no cotidiano (até sua ligação com os peixes pode ter a ver com seu mergulho no mundo interno, das águas de sua consciência), Geuru somos todos nós diante do baque de uma notícia de morte. Enquanto seu tio demonstra-se agressivo e insensível, querendo quebrar essas regras, ele tenta mantê-las mesmo em meio ao caos. A perda força o garoto a crescer e a superar os limites, usando toda sua experiência em relação a morte dos outros para lidar com a própria dor. Sua “indiferença” e afastamento psíquico do enfrentamento o ajuda a não sentir nada quando está diante do tema. É também uma crítica de como nós todos também encaramos a morte de forma pragmática todo dia, mas nem sempre a processamos internamente porque não é conosco. São números de mortos anunciados por um jornal que não estão em nossos lares… até estar.
Além disso, também é uma crítica ao tabu criado em volta do inevitável: todos iremos morrer e, no entanto, protegemos crianças do assunto fingindo que ele não existe, mas elas, assim como nós, serão futuros adultos que nunca foram preparados para fazer o caminho ao céu.
Fechando o trio, Namu, a mais sensata e tranquila, ajuda nessa passagem da aceitação. Ela ainda se emociona com os casos, mas tenta trazer uma energia ativa para reverter a tristeza e decide fazer parte da equipe que lida com a morte de outras pessoas, ou seja, ressignifica o luto para ajudar outras pessoas. Também é um símbolo da importância de apoio familiar e de amigos nesse processo.
A série também foca muito na soberba cruel de diversos figurantes, que são o mundo externo, que não deixa de ser um carrasco diante da dor alheia. Em relação a essa crítica ao capitalismo agressivo e à desigualdade, há uma passagem em especial que resume o significado da série: as notas de dinheiro que passam por um processo de lavagem de restos mortais e permanecem intactas. Esse ato, fortíssimo, dá o recado: o dinheiro fica, as pessoas não. Enquanto o ser humano se dissolve completamente no processo químico da morte, o material, tão valorizado, sobrevive intacto. As coisas podem ser recuperadas, mas as pessoas não. Os objetos cabem em uma caixa, mas as vidas que eles representam não são palpáveis. Nota para a cena na qual os tênis estão posicionados de modo que o filho entra em casa, enquanto o pai está de partida.
A partir disso há tantas lições e reflexões que podemos fazer que cada vez que penso em um trecho deste texto acabo refletindo uma nova. Esta série valeu cada episódio e cada lágrima, é realmente muito significativa, sobretudo neste momento sombrio com tantas mortes no qual vivemos. Convido a todos para deixar suas impressões nos comentários, afinal, o luto é individual e cada pessoa o vive de uma maneira.
Em tempo, a partir de questionamentos dos comentários, digo que o final também me pareceu bem misterioso, que pode ser um gancho para uma segunda temporada, mas a borboleta, como símbolo de morte e mudança, e um possível amor nascendo no coração do Geuru me deixou instigada. Seria um novo ciclo? Estaria significando que uma nova pessoa que ele passou a amar corre o risco de morrer, então ele tem a chance de encarar os fatos de outra maneira? Diga nos comentários o que acha que significa!
Conclusão
A Caminho do Céu é um poderoso exercício da mais sensível empatia, pela qual é possível compreender uma pessoa até por sua escolha de objetos. Traz a reflexão da vida humana e como os objetos que por ela passam durante anos cabem em uma caixa. O que significa estar vivo e de que maneira deixamos memórias para os demais ou valorizamos aqueles que vivem. É sobre encarar a morte e como viver apesar da certeza da finitude do ser.
Muito sensível, por vezes revoltante, faz críticas poderosas e atuais ao ser humano ligado intimamente ao material , que é capaz de ignorar uma vida e literalmente meter as mãos nos restos mortais de uma pessoa para tentar caçar dinheiro ou status.
Precisamos falar sobre morte, precisamos encará-la e, apesar de todas as dificuldades, transformá-la e aceitá-la para que possamos, junto com nossos entes queridos, completar nosso caminho da vida e alcançar a paz. Fazem parte desse processo a caminho do céu olhar e aceitar toda a dor, a raiva, a negação e nosso lado sombrio.
Nota:
Entendo que há várias coincidências e facilitações narrativas apoiadas na genialidade do protagonista. Porém, dado o valor simbólico da obra como um todo, inclusive ciente dos sentidos que me escaparam, e tendo coerência com as lágrimas que eu derramei, deixo aqui minha nota máxima e o selo de “imperdível”.
O que ver a seguir
Sabia que The Good Doctor é uma série originalmente coreana? Tem só uma temporada e pode ser uma ótima oportunidade para conhecê-la.
Navillera é a história de um homem de 70 anos que decide realizar o sonho de dançar balé e fazer algo que realmente quer antes de morrer. É uma grande reflexão de vida também. Com certeza você irá gostar de um se gostou do outro.
Tudo Bem Não ser Normal trata das sombras, traumas e defeitos humanos com bastante leveza, um toque de humor e bastante mistério e romance.
Para mim, o final quis dizer que vamos todos morrer em breve, e não como gancho para segunda temporada.
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Gostei bastante da sua leitura sobre o final!
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Linda linda linda essa serie. Chorei assistindo aos 10 episódios.
Gostei da resenha.
Alguma série parecida com essa para indicar( Sensível e valiosa)?
💖
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Igual a essa, não achei ainda. Mas gostei muito de “Amanhã”, que trata sobre o suicidio, “Uma segunda chance” que é sobre uma mãe que morre no parto e “Missing: The Other Side” que trata sobre mortos não reconhecidos. Todas mostram uma maneira de enfrentar a morte.
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Com certeza Navillera e Dear My Friends.
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Republicou isso em Sentimentos de Juliana.
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Que resenha linda!!! Faz jus ao dorama. Parabéns!!!
Acho que vamos entender a cena final numa segunda temporada. Vamos descobrir.
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Essa resenha é uma pérola e A Caminho do Céu é imperdível, ma-ra-vi-lho-sa!
Como é possível um único dorama me fazer rir tanto e me provocar tantas lágrimas ?
Como é possível alguém criar um roteiro tão possante e envolvente?
E que desfecho é esse com várias possibilidades?
Obrigada, queridos atores e querido roteirista!!!
Nota 1000 pra vocês 💞💕💖
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Oi, Juliana. Conheci sua página esta semana e achei ótima sua resenha. Vou assistir D.P devido a que li. E também gostei muito de Caminho No Céu, mas só fazendo um adendo, na minha opinião o Tio de Geuru sofreu abandono e violência de um pai abusivo e entrou no círculo vicioso da sobrevivência, que culminou em sua prisão, e sentimento de culpa. Geuru teve um pai protetor.
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Muito válido! O ambiente faz toda a diferença na criação de alguém. 🙂
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Querida Juliana
Adorei a série Move to Heaven e adorei a sua crítica, reflexões e palpites! Parabéns! Esta série é excelente e bem feita! Só o final que aponta para uma provável 2a temporada! Grande abraço
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Oi, Marcia, muito obrigada. Fico feliz em partilhar com você ♥
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Finalizei agora (literalmente) esse kdrama e não poderia está mais satisfeita com uma resenha sobre ele como estou com essa! Ficou incrível!!
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Muito obrigada, Fernanda ♥
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