Resenhas de Kdrama

[Resenha] Round 6 : batatinha frita 1, 2, 3 e a criança psíquica

Squid Game é a série de maior sucesso na história da Netflix até então (2021). O drama coreano de apenas 9 episódios e com promessa de segunda temporada conta a história de pessoas endividadas que aceitam entrar em um jogo mortal com dinâmicas aparentemente infantis, mas valendo a própria vida e muito dinheiro. Tem dublado.

Eu não queria assistir Round 6 porque as cenas violentas me fazem sentir mal. Também não queria fazer uma resenha da série porque seria mais do mesmo, mas ao mesmo tempo ficaria um buraco quando os anos passassem e eu não tivesse feito. Teve até reclamação aqui no blog depois que eu escrevi só um textinho bobo de primeiras impressões. Então, feito o desabafo e correndo o risco do tema já estar esgotado, vamos falar de Squid Game tentando trazer um toque diferente. Afinal, com toda a fama da série eu acabei assistindo e gostando bastante.

Em primeiro lugar, o roteiro do Hwang Dong Hyuk foi rejeitado por dez anos, por ser considerado violento demais. Só aqui já podemos fazer algumas reflexões sobre como o mundo mudou em dez anos (progamas de humilhação humana em troca de dinheiro viraram até lugar comum) e como a Netflix trouxe uma ferramenta de globalização de entretenimento muito especial. O Brasil é um grande consumidor de novelas coreanas hoje em dia e sem essa plataforma facilitadora, muitas pessoas continuariam com preconceito e não teriam se interessado em ver. Os dorameiros que bem sabem a chacota que passaram por ver séries coreanas esse tempo todo e agora estamos assistindo um monte de gente apaixonada por nossos oppas, unnies e o jeitinho coreano de fazer humor sombrio. Bem antes do batatinha 1, 2, 3, o autor escreveu o premiado Silenced (Silêncio, 2011), que encenou a história real dos abusos sexuais cometidos pelos professores de uma escola para crianças com deficiência auditiva que aconteceram entre 2000 e 2004.

@nowadayz

Elenco

Alguns rostinhos amados dos dorameiros estão por aqui, como Gong Yoo, que nós conhecemos como o Goblin, atuou no projeto de sucesso de 2011 do diretor, e o Lee Byun Hun do Mr. Sunshine. Os principais ficaram a cargo do Lee Jung Jae, de Chefe de Gabinete, e o Park Hae Soo (Manual do Presidiário e Casa de Papel versão coreana, como Berlin).

Apesar desses nomes de peso, os produtores comentaram em entrevista que escolheram propositadamente rostos desconhecidos, para dar um ar de figuras que não são protagonistas na vida e maior identificação com a audiência — deu certo. Entre eles, a modelo Jung Ho Yeon, que teve sua estreia na série e se tornou embaixadora global da Louis Vuitton, por seus mais de 20 milhões de seguidores no Instagram (até o momento da publicação deste texto). Outro que caiu nas graças do povo foi o indiano Tripathi Anupam. O ator, que interpretou um homem do Paquistão, vive na Coreia e fala fluentemente o idioma, o que surpreendeu o diretor. Wi Ha Joon, o policial do tanquinho, fez o mundo se apaixonar à primeira vista. Ele estará em Bad And Crazy, com o Lee Dong Wook, e está no Netflix com Romance is a Bonus Book.

O interessante de colocar rostos pouco conhecidos é que tornou a fantasia da existência daqueles personagens maior. O amor (ou ódio) que os espectadores desenvolveram pelos pesonagens saiu da tela e refletiu nos seguidores deles. Em entrevistas, os intérpretes da Minyeo (Kim Joo Ryung) e do Deok Soo (Heo Sung Tae) comentaram que recebem pedidos para serem levados ao banheiro, e Kim Joo Ryung se viu supresa por ganhar elogios por sua aparência.

A série em si…

É uma série de sobrevivência, como aquelas que a gente conhece no mundo do leste asiático. Kaiji, Battle Royale, Alice in Borderland… Isso não é novidade. A novidade em si é como Round 6 resolve contar tudo isso. Mesmo acostumada a esse tipo de série — e até evitando o gênero — acabei surpreendida pelos intertextos que o dorama nos dá através da direção, os eastereggs e possibilidades de interpretação. Tudo isso torna essa série diferente, uma “brisa coletiva”, na qual cada um absorve a série de um jeito. Acho isso bem interessante.

Uma análise da instância psíquica em Round 6

Ok, feitas as apresentações, vamos comentar algumas peculiaridades desse jogo social? Essa série pode ter vários tipos de interpretações e certamente há dezenas de opções por aí que irão enriquecê-lo. Aqui vai um recorte do meu olhar sobre ela, sob uma perspectiva psicológica na organização dos jogos. Será que faz sentido?

Squid Game traz uma proposta de jogos de infância. Se fosse no Brasil, provavelmente teríamos a dança das cadeiras, amarelinha, queimada, pular colar… O cenário foi composto de maneira a transformar os adultos em pequenas crianças. O playground é construído em tamanho aumentado para criar a sensaçao de uma criança chegando a um parquinho, segundo a cenógrafa. Essa transposição para o mundo da criança tem explicação psicológica também. Quando crianças, tendemos a ser mais passionais, intensos, com baixa tolerância a frustração, com uma ilusão criada por ambientes familiares de que somos especiais e indiscutivelmente merecedores. Ao transformar adultos em crianças, instigamos a criança psíquica de cada um, o chamado ID que compõe as seções mentais da Psicologia.

O ID é desejante. Quer agora, para ontem, e não importa as consequências. É a instância primitiva, movida por pulsões básicas que partem dele. É o desejo destrutivo, mas ao mesmo tempo é uma motivação de vida. Sem o brincar, o lúdico, a vontade de fazer e querer, não há motivador que percorra a vida. Squid Game mostra isso em muitas passagens. Quando a criança interna morre, não importa quanto você tenha acumulado em posses ou antigos desejos, pois você continuará infeliz. No entanto, se der poder sem limites para a criança interna, ela se transformará em um pequeno rei tirano que corta cabeças porque está entediado.

O regulador de tais estripulias é o Superego, que é rígido, intolerante, racional, um verdadeiro soldado. Para conter nossas crianças nas brincadeiras de Round 6, temos os soldados rosa (cujas vestimentas são escolhidas para que não seja possível identificar os gêneros dos funcionários e para dar um ar de brincadeira), que vão tolhir qualquer passo em falso e punir qualquer rachadura em um biscoito de açúcar. Assim funciona também nossa mente: toda vez que você sente vergonha, é como se levasse um tiro de um soldadinho de Roung 6, por ser “tão burro”. Em excesso, mata a criança interna, a apavora e paralisa as ações. Na medida certa, traz prudência, segurança e mostra regras que devem ser seguidas para autopreservação.

@squidgamesource

No meio de tudo isso temos o EGO, o porteiro que regula o que vai ficar em segredo e o que vai ser revelado. É quem é impactado o tempo todo por uma criança que quer fazer de tudo e a culpa proibitiva. Pode pender para um lado ou para o outro e vive em uma corda bamba entre o que está fora e o que está dentro. Quanto de dor do outro nos afeta e quanto apenas? Aqui acredito que entraria a pessoa misteriosa da máscara, que regula os jogos, cuida tanto dos participantes quanto dos soldados. É um supervisor neutro, que observa e tenta balancear os desejos das crianças e das regras do jogo. Diz prezar por uma “luta justa, na qual todos são iguais”, desconsiderando características individuais e colocando todos na mesma balança. O que levou esse personagem a se tornar assim é um mistério, mas há uma dica que faz sentido especialmente pensando em como tudo isso é conduzido.

@jeongwoosung

O curioso caminho das seis rodadas vai testando o mental dos participantes, de modo a arrancar suas defesas, instigando-os a se tornarem mais primitivos. Os jogos começam individuais, formatados de tal maneira que aquela criança interna competitiva é aflorada, trazendo conflitos diretos da infância, como ser excluído ou aparentemente fraco no jogo. Depois, conforme estabelecidos os grupos sociais de identificação e seus antagonistas, propõe um sacrífico em grupo, sem rosto, transformando uma equipe, que até um momento atrás era apenas “mais um deles” nos “Inimigos”. Com o título de “grupo adversário”, “esses maus” contra “nós bons”, tudo bem matar. Até que é colocada à prova essa aliança e bondade: até que ponto seu altruísmo seria capaz de ferir sua sobrevivência? E assim temos um dos episódios mais tristes da série, que revela o puro instinto de sobrevivência humano e a tocante generosidade desprovida de si mesma em tantos outros. A moralidade não fica intacta após essas experiências e os traços de humanidade apresentados no começo da série acabam moídos.

Por fim, no final de toda essa batalha entre ID e Superego, sobra o sujeito, o vencedor do prêmio, o desejo suposto. Vencer para sobreviver, de maneira literal, com vida, e subjetiva, com o prêmio. Os traumas carregados, no entanto, sugerem um sobreviver, sem viver, apesar de ter alcançado tudo que supostamente mais se desejava. O curioso é que mesmo assim é feita uma escolha que revoltou muita gente naquele final e faz pensar sobre o que seria então o verdadeiro desejo do personagem, que ignora uma promessa feita e decide tomar uma atitude aparentemente vingativa.

Não acredito que isso tenha sido proposital. Me parece um artifício de deixar a história no ar, o que funcionou tanto que criou uma demanda para segunda temporada. Fico curiosa para ver o que acontecerá na próxima temporada, porém, sabendo que não eram os planos originais do roteirista, não levanto muitas expectativas. Esta série de toda forma já entrou para a história, tem possibilidades de interpretações por vários ângulos (e até a opção de ignorar tudo isso e só se divertir com a adrenalina e a boneca assassina) e mesmo sendo um formato já conhecido em outros lugares, tem uma trilha sonora (mesmo compositor de Parasita) marcante, um visual bem pensado e personagens carismáticos que a tornam imperdível.

Avaliação: 5 de 5.

Quer ver mais séries parecidas? Fiz uma lista com algumas recomendações.

1 comentário

Deixe um comentário